“O Som Ao Redor”, do Kleber Mendonça Filho, mantinha até pouco sua posição confortável entre aqueles longas desconfortáveis que tratavam de algumas das tensões que ora reverberam neste país – e de como estas implodem certos paradigmas sociais, econômicos e culturais bem arraigados em nossa sociedade.
Bem, mantinha… Agora o filme de Kleber Mendonça tem que disputar minha admiração com outro recente, belo, complexo e indispensável filme: “Que Horas Ela Volta?”, da Anna Muylaert.
A comparação entre os dois não soa improvável – já que a própria Muylaert Entrevista com Anna Muylaert pondera que os dois dialogam de alguma forma -, mas esta mesma proximidade possível apoia-se em um viés: enquanto o que em “O Som Ao Redor” é pura fúria explodindo na tela e dando sentido aos diferentes conflitos e à negação em potência de uma reconciliação inexistente, “Que Horas Ela Volta?” mira nos silêncios, na suavidade, em uma desconstrução sensível de um conflito – este, especialmente representado pela “rebeldia” posterior de Val, a doméstica interpretada de modo brilhante por Regina Casé.
Val é aquela típica doméstica-matrona que bem conhecemos: obrigada e doutrinada a saber seu “lugar”, mesmo sendo quase da família e que limita-se a tentar agradar seus patrões: é assim que “Que Horas Ela Volta?” nos remete aos outros cômodos da nossa grande Casa Grande; é assim que nos leva para um ambiente onde a manutenção de uma lógica de submissão recorre à disposição de atores que reconhecem as diferentes matizes sociais em jogo e que as ignoram…
Não por acaso os principais instantes de tensão no longa se dão a partir de uma porta deslizante que separa a sala de jantar da cozinha: este, o lugar onde a mise-en-scène elaborada por Muylaert ganha mais força e evidencia não apenas um sujeito, mas a segregação deste, o esmagamento de sua identidade…
É neste contexto que Jéssica, a filha que Val deixa para trás mas que nunca a esquece, é um personagem gigantesco. Interpretada de modo impecável por Camila Márdila, Jéssica é o motor transformador da trama: o longa que em seus primeiros minutos parecia uma caricatura de uma classe média resolvida em seus recalques se transforma com a chegada da “filha da empregada”. A sensação que temos com a chegada de mais este peão no conflito é de que poderíamos cortar o ar com os dedos, tamanha a tensão que a personagem imprime.
Todos os planos que atravessam o longa – seja ao redor da piscina, nos jardins da casa ou mesmo na dualidade cozinha-sala de jantar – são revisitados de certa maneira para demonstrar a tensão que a chegada deste novo ator atribui à trama. Prova disso? Para muitos a cena à beira da piscina ou a da filha da empregada comendo o “sorvete de Fabinho” são considerados momentos-chaves: particularmente fico com o choque da descoberta de que a filha da empregada se sobressaiu onde não deveria – e vocês entenderão o porquê.
É neste instante que se opera uma transformação, que o conflito se elucida, que as revelações se consolidam. “Que Horas Ela Volta?” é surpreendente por nos apresentar como estas operam, como certos “valores” são destroçados e como a descoberta do possível, de algo que fora negado pode ser obtido, pode libertar.
Particularmente, “Que Horas Ela Volta?” é a irmã centrada de “O Som Ao Redor”: uma irmã que, tanto quanto seu irmão, sabe quais pingos importam nos is…
Talvez por isso o riso histérico de alguns nas sessões do longa não mascarem o aparente desconforto que o longa imprime.