Crônicas

A Espera Tem Lado

Tenho lado. Sim, desde sempre. Desde que percebi que, mesmo que não o queiramos, é imprescindível ter lado. Talvez seja maniqueísmo, mas, vejam: ter lado implica uma definição de princípios, uma reunião consolidada de idéias e uma perspectiva prática inerente a tal conjunto.

Ter lado é necessário. Sempre estive do lado daqueles que sentem ou sentiram a miséria na própria carne; dos que não julgam pela cor da pele, credo ou desejos; dos que estão dispostos a ouvir, mesmo que o que ouvirão seja avesso ao que se acredita; dos que creem que o injusto não pode prevalecer; dos que sabem perder porque, ao aceitar tal, ganham mais; dos que aceitam perder, mas que não se deixam dobrar na direção do malfeito; dos que amam, odeiam, percebem, perdoam.

Este sempre foi meu lado. Não tenho e, creio, nunca terei qualquer chance de convívio com quem não compartilha de tais premissas. Chame do que quiser. Diga que não devemos separar o mundo entre “nós” e “eles”. Mas, de verdade, esta é uma idéia necessária: não tenho necessidade e não me interessa converter feras. Para elas, silêncio.

Às feras pouco importa meu lado; pouco importam meus valores; pouco importam os meus. Às feras não interessa o respeito, a doçura e o bem querer. Às feras importa a fúria e a cegueira da violência. Ela, a violência, cega desde sempre, cala pelo grito.

Temos lado. Eu e você temos. Sempre tivemos e sempre teremos. Estou do lado de cá. A calmaria não é um sinal de fraqueza aqui. É, sobretudo, a espera. Esperamos. Este lado vence. Sempre. Vencerá.

Espere e confie.

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Cinema, Crítica

O live-action de Ghost in The Shell é somente casca: não há “fantasma”…

O anime Ghost in The Shell, de Mamoru Oshii e lançado em 1995, é uma bomba filosófica. Não por acaso, filmes como Matrix ou Ex-Machina beberam diretamente do longa ao discutirem questões como inteligência e consciência artificiais: os dilemas e reflexões encerrados naquele filme reverberam até hoje e sua influencia é visível tanto em filmes quanto em séries contemporâneas e, creio, esta é uma componente valida a considerar quando nos deparamos com o remake do diretor britânico Rupert Sanders.

O Vigilante do Amanhã, mesmo investindo em um elenco estelar e num trabalho de arte impecável buscando transpor muitos dos elementos que atravessam o anime, falha quando investe em uma construção narrativa alinhada ao esquema típico dos blockbusters hollywoodianos contemporâneos. A opção do diretor resulta em algo vazio, sem sentido, sem alma…

O remake de Sanders é tão somente um apanhado visual impecável que tenta atribuir substância a uma reunião de elementos narrativos fáceis, conflitos simplórios e termina tão somente por nos apresentar algo esquemático, superficial e irrelevante. Conceitos caros ao anime de Oshii terminam subvertidos ou, melhor, diluídos em um arremedo que se pretende palatável. Não é isso o que termina na tela, mas justamente seu contrário: um longa risível para os, como eu, fãs do longa de 1995; um filme de ação caótico e superficial, mas funcional para os que se importam menos com a narrativa e mais com o visual.

Assim, considero que o filme não tem um “fantasma” que o sustente em pé,  mesmo a presença de um elenco de peso – com Scarlett Johansson, como a Major Motoko como seu principal nome -, incapaz de impedir a queda vertiginosa da trama. Nomes como Takeshi Kitano e Juliette Binoche, também utilizados quase que superficialmente, se mostram aparentemente perdidos em uma espiral sem sentido que desfigura o anime completamente.

Quando digo que não há “fantasma” em O Vigilante do Amanhã é porque lhe falta alma, substância. O filme é um espetáculo visual e muitos dos elementos visuais apresentados no anime – a versão realista de uma futura e tecnologicamente caótica Hong Kong impressiona – convergem e surpreendem quem espera tão somente por uma transposição do anime ao live-action, mas é só.

No fim, nos resta tão somente a casca. E justo sobre isso, é a predominância de tal casca que cobra um preço caro ao filme quando restam apenas diálogos constrangedores em sua superficialidade – a discussão sobre o “fantasma” entre a Major (Johansson) e a Dra. Ouelet (Binoche) é risível de tão rasa – e um roteiro frágil. O que sobra do peso sobre tal casca se transforma em trunfo frente à fragilidade da trama porque, visualmente, o filme apresenta tudo o que um fã do anime poderia esperar – descontada a história.

Não pretendo aqui tomar seu tempo explicando, por exemplo, a história de Ghost in The Shell: qualquer pesquisa rápida no Google resolve esta questão na boa. Tão pouco pretendo minar seu desejo por ver o remake, mas, antes, gostaria apenas de alertar que, independente da ordem, ver o anime de Oshii ou o remake de Sanders fará com que você veja ambos os filmes com outros olhos.

Para o bem ou para o mal, afinal, nosso “fantasma” pede sempre por mais e mais.

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