Kidbug
Crítica, Música

O disco de estreia da Kidbug é um bálsamo para esses dias esquisitos…

Kevin Shields e Tanya Donnelly entram em um bar, bebem um cerveja e decidem fazer um disco juntos… É assim que tenho definido o disco homônimo do Kidbug: as texturas de guitarras, as microfonias, aquela melodia característica de algum ponto perdido entre o fim dos anos 1980 e a metade dos anos 1990 estão lá expostas neste disco.

Capa do disco de estreia do Kidbug

O núcleo da Kidbug é formada por Marina Tadic (da Eerie Wanda) e Adam Harding (da Dumb Numbers) e, ainda, por Thor Harris (Swans) e Bobb Bruno (do Best Coast).

Tadic e Harding se conheceram no final de 2018, como explicam na página da banda no Bandcamp, e passaram a trocar cartas de amor e descobrir as afinidades musicais de cada um.

Não é por acaso que fiz a brincadeira lá em cima com dois nomes que considero importantes no cenário indie/alternativo dos anos 1990: a Kidbug passeia com maestria no território de bandas como My Bloody Valentine, The Jesus and Mary Chain, Pixies, Belly, Sonic Youth, dentre outras.

Canções como Lovesick, Never e Woozy caberiam confortávelmente no repertório de quaisquer desses grupos e é justamente a qualidade das canções, das texturas de guitarras e a voz de Tadic que carimbam este álbum de estréia.

O disco, por sua vez, é fruto de um ano esquisito marcado pela pandemia de Covid-19 e pelo distanciamento. Lançado em maio de 2020, o disco detém uma atmosfera tensionada, intimista, confinada diria, que reflete muito desses dias.

Há dois pontos que chamam a atenção nesse álbum de estréia: a voz de Tadic e o trabalho de guitarras que ela e Harding imprimem às canções da banda.

A voz de Marina Tadic remete a algo que se equilibra entre Tanya Donnelly, do Throwing Muses/Belly, e a “eterealidade” de uma Elizabeth Fraser, do Cocteau Twins.

Já as guitarras de Harding e Tadic passeiam pela paisagem sonora com que eles se dizem familiarizados e, talvez por isso, a pegada da banda se finque em microfonias e harmonias que seriam muito bem abrigados em discos como o “Isn’t Anything”, do My Bloody Valentine ou em um “King” do Belly – e aqui a cozinha composta pela bateria de Thor Harris e o baixo de Bobb Bruno levam tudo a um acerto impecável.

Confesso que havia muito não escutava um disco que me chamasse a atenção como esse do Kidbug… Me senti transportado a um tempo e atmosfera que me lembraram como a música pode ser um refúgio para dias como esse.

Parabens aos caras: que belo disco de estreia…

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Afinal, o Vinil voltou para ficar!? Não, não voltou: ele sempre esteve aí e, pasmem, fingiu perfeitamente a própria morte…

Há algo que tem feito esta pandemia de Covid-19 um pouco menos desgastante neste interminável 2020: a coleção de discos de vinis que somente cresceu ao longo dela. Cresceu exponencialmente e atravessando os mais diversos gêneros: Jazz, Pop, MPB, Clássico, Rock’n’Roll… Se tem algo que posso me vangloriar é a diversidade dos meus discos, uma vez que ele atravessa todos os gêneros musicais que gosto.

Mas nunca fui um colecionador de discos de vinil, diga-se: isso é algo bastante recente. Antes dos “bolachões”, colecionava as “bolachinhas plásticas e brilhantes”: minha coleção de Compact Discs era, até pouco, a “menina dos olhos” aqui de casa. O primeiro CD que comprei, o “Document” do R.E.M., estava na minha coleção desde o distante ano de 1991 – ano em que comprei meu primeiro tocador de Compact Discs.

De lá até a segunda metade de 2020, a coleção de CDs já continha algo em torno de 1.000 discos que eram cuidados com toda a atenção e cuidado…

Mas em meados de 2016, enquanto circulava pelo Sebo Cata-Livros, um dos mais longevos aqui em Natal/RN e que é comandando pelos amigos Jácio e Vera, dei de cara com um toca-discos usado que eles tinham à disposição por lá. Era um Belt Drive da Kenwood que me fisgou de imediato: comprei o toca-discos, levei para casa e, a partir dali, passei a adquirir discos de vinil com alguma regularidade.

E aqui, antes de prosseguirmos, cabe uma explicação…

Em geral, os toca-discos estão divididos basicamente em dois padrões: Belt Drive e Direct Drive. Os toca-discos Belt Drive são aqueles que têm o “prato” onde o disco de vinil é colocado ligado ao motor através de um sistema de roldanas de borracha. Já os Direct Drive são aqueles toca-discos em que “prato” e motor integram o mesmo elemento. Há fãs para os dois sistemas, mas gosto dos dois – mesmo que atualmente tenha em casa um Technics Direct Drive.

Muito se falou sobre o fim dos discos de vinil com a chegada do Compact Disc entre as décadas de 1980 e 1990, mas, também, sobre o fim das mídias físicas com a expansão do Streaming a partir dos anos 2010, mas o que ocorreu foi a expansão dos discos de vinil em uma escala que, recentemente, superou a dos CDs – primeira inovação que se apresentava como um dos fins para o vinil.

Mas o que motiva afinal esse retorno dos discos de vinil? Para muitos, pura nostalgia: velhos entusiastas do formato estariam investindo nessa mídia e, com isso, estimulando tal retorno.

O único porém que tal raciocínio encontra, no entanto, diz respeito ao público: uma pesquisa recente apontou que cerca de 57% dos consumidores de vinis encontra-se na faixa entre 15 e 25 anos de idade e outra parcela significativa entre 25 e 35 anos, enquanto outros cerca de 25% dos consumidores de discos de vinil está entre os 35 e 35 anos.

Creio que o que motiva boa parte desses consumidores de discos de vinil tem a ver com algo que defino como complementaridade da experimentação: o vinil exige uma maior imersão no processo de ouvir música e não está resumido a apenas um sentido, mas aos mais variados.

Ouvir a um disco de vinil implica não apenas a escuto, mas, sobretudo, o estímulo às componentes visuais, táteis e, porque não, olfativas até desse mídia. Por isso creio que a experiência de ouvir um disco de vinil seja algo mais amplo, complexo e complementar que ouvir uma canção em um serviço de streaming.

A persistência dos discos de vinil é um indicativo de que a lógica de uma “sobreposição das mídias” é tão somente simplista, não dando conta das diferentes dinâmicas que podem envolver à longevidade de uma tecnologia ao longo do tempo – especialmente se considerarmos como diferentes sujeitos interagem e consomem essa mesma tecnologia.

Quando um geração que cresceu com o digital do streaming e adota um suporte calcado no analógico como os discos de vinil vemos não apenas a perspectiva de uma complementaridade entre mídias, mas a persistência de uma delas em relação aos que imaginavam-na superada – como outras recentes, bastando pensar em tecnologias como os Laser-Discs, o VHS ou mesmo as fitas K7.

Voltar aos discos de vinil me leva a constatar que uma mídia depende, sobretudo, do desejo de seus entusiastas por experimentar os limites de uma mídia. Longa vida aos bolachões, meus amigos!

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“Dias Raros” das Melenas é aquele disco que você deveria estar escutando desde ontem…

Olha, tem um disco que está em rotação máxima por aqui: não paro de ouvir Dias Raros das Melenas.

A culpa por isso é toda do Henry Rollins e do programa que ele tem na KCRW, mas não reclamo: foi uma descoberta que até agora, passadas umas três semanas, ainda perdura.

As meninas são de Pamplona, na Espanha, mas são donas de uma sonoridade que as remete a qualquer lugar entre os anos 1990 e 2010 em qualquer lugar nos dois lados do Atlântico que produziam um som com texturas etéreas para canções perigosamente cativantes e que te arrebatam logo nas primeiras audições.

Sério, Dias Raros tem rolado por aqui e me pego em diferentes momentos retornando a elas no Spotify. Inevitavelmente esbarro e sigo ouvindo o disco e, não raro, volto ao início para escutar novamente. O disco é um daqueles raros momentos em que uma sonoridade deliciosamente pop encontra os aspectos mais elementares daquela pegada indie/alternativa/garageira que você tanto gosta e que anda escassa nesse dias.

Está tudo lá, podem conferir: as meninas mandam muito bem.

Até pouco, vinha escutando algumas das bandas que adoro: The Breeders, Violeta de Outono e Pin-Ups. Preciso dizer que as Melenas caíram feito luvas nessa pegada que mantive há alguns dias por essa pandemia: há um brilho impressionante em canções como No Puedo Pensar que me fez remeter às melodias do Belly e às guitarras de Tanya Donnelly.

Há algo de um Star nesse novo trabalho das Melenas, assim como há algo de quase tudo o que fez minha cabeça nos anos 1990: as guitarras que gritam melodicamente, os vocais etéreos, a falsa atmosfera de despretensão que envolve canções que nos brindam com aquela percepção que só temos a partir da garagem, do fundo da platéia, de quem se aparta para apreciar o que está a acontecer…

Me alegra, confesso, que um grupo como as Melenas aposte em uma sonoridade como essa. São poucos nesses dias capazes de soar tão autênticos e brilhantes como elas…

Parabéns, meninas: suas canções não desgrudam da minha cabeça e isso é um bom sinal – ao menos para mim – de que vocês têm muito pela frente…

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O Lamento de Dylan Sobre os Dias Que Se Vão…

By the time I got to New York
I was living like a king
There I’d used up all my money
I was looking for your ass
This way or no way
You know, I’ll be free
Just like that bluebird

O trecho acima é de Lazarus, canção que está naquele disco que pode ser considerado a melhor acabada despedida de David Bowie: Blackstar. O disco foi lançado quando Bowie completou 69 anos e, dois dias após seu lançamento, ele deixaria a existência. A canção é sobre esta despedida e, para além desta faixa, tudo está lá em Blackstar: o apelo à vida, a busca por redenção e a certeza de que os dias estão terminando. Não é um disco fácil, mas é o testamento de Bowie.

Por que diabos escrevo sobre Bowie quando quero falar de Bob Dylan e seu trabalho mais recente? Porque “Rough And Rowdy Ways”, novo trabalho de Dylan após oito anos desde o disco anterior, “Tempest”, de 2012, envereda por caminho semelhante àquele traçado pelo Blackstar de Bowie: um acerto de contas com o passado enquanto se tem tempo para tal, mas também uma prece para os dias e caminhos difíceis ainda a trilhar a partir daqui.

I Contain Multitudes”, canção que abre o disco, entrega já nos seus primeiros versos a reflexão sobre como tem sido existir nesses dias e como um dos maiores poetas de nossos tempos tem lidado com a inevitabilidade e como esta urge em um dialogo com sua poesia:

I have no apologies to make
Everything’s flowing all at the same time
I live on the boulevard of crime
I drive fast cars, and I eat fast foods
I contain multitudes

É nessa mesma canção que Dylan busca por Poe e Blake: os fundamentos de sua reflexão, de sua lírica em torno do fim à espreita em suas mais diferentes manifestações e, com isso, nos diz que, apesar de já em conta, ainda há histórias a contar, reflexões a fazer e perspectivas a desnudar enquanto os dias não findam…

Rough And Rowdy Ways
Capa de “Rough And Rowdy Ways” de Bob Dylan.

Dylan alfineta com a afirmação que não é “nenhum falso profeta: apenas sabe o que sabe e diz o que precisa ser dito” em “False Profet”, segunda faixa do disco. Nela, Dylan lança ainda mais lenha nesta estranha fogueira que o cantor acende para refletir sobre si, seu lugar neste mundo revolto e o quão resignado está ao não mais poder/querer intervir em seus rumos.

Lembremos do jovem Bob Dylan, das canções de protesto, das canções sobre amor, guerra, fé, tristezas e alegrias; lembremos do Dylan que movia multidões em torno de sua presença e que desenhou parte da paisagem cultural do Século XX. Bem, é este Dylan que se apresenta para nos lembrar que tudo o que dissera ao longo das décadas de sua travessia, mais que fazê-lo orgulhoso de seu legado, parece o amargurar.

Black Rider”, quinta faixa do álbum, parece aprofundar ainda mais o que Dylan pensa sobre seus dias neste mundo:

Black rider, black rider, all dressed in black
I’m walking away, you try to make me look back
My heart is at rest, I’d like to keep it that way
I don’t wanna fight, at least not today
Go home to your wife, stop visiting mine
One of these days I’ll forget to be kind
”.

A canção mais parece uma conversa entre conhecidos, parceiros, entre indivíduos que nunca deixaram de se encontrar. Este é um ponto interessante desta faixa: aquele com quem Dylan dialoga mais parece um mensageiro que o obriga a rememorar seu passado e é uma das minhas canções favoritas deste disco.

Rough And Rowdy Ways” não é um disco fácil e não agradará a todos, mas é certo que despertará bastante atenção por tudo o que Dylan destila em suas dez faixas. Quando sugiro parágrafos acima a comparação entre este disco e o “Blackstar” de Bowie esta se dá devido a toda carga pessoal, íntima, que Dylan imprime.

Desafio qualquer um a resistir e permanece impassível aos 17 minutos de “Murder Most Foul” e não apenas à narrativa de Bob Dylan para a morte de John F. Kennedy, mas ao percurso que ele faz pela década de 1960 e seus diferentes heróis e fontes de inspiração.

Rough And Rowdy Ways” é um acerto de contas de um poeta com sua história e arte. Não, novamente, um acaso que Poe e Blake estejam lá: Dylan homenageia seus amigos e heróis porque sabe que deixa sua marca na história e cultura; Dylan sabe que será eterno.

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“Dummy” do Portishead completa vinte e cinco anos urgente e viçoso como nunca…

Estou ficando velho… Verdade, estou. Não lembro quando ouvi Dummy do Portishead pela primeira vez: pra falar a verdade, creio ter começado a ouvir a banda em algum momento dos anos 1990 enquanto me enterrava nas noites de domingo vendo o que diabos o Fábio Massari tirava da cartola no Lado B MTV

Creio que foi Numb, mas juro não ter certeza. Só lembro da garotinha cantando junto com a Beth Gibbons e como aquilo era, ao mesmo tempo, estranho, moderno e desconfortavelmente lindo. O Portishead se tornou, a partir daquele instante, uma das minhas obsessões da segunda metade dos anos 1990: precisava ouvir/ver/ter tudo o que eles produziriam/produziram porque, bem… Porque sim!

Dummy é de 1994. Naquele ano, em Natal, no Rio Grande do Norte, ainda estávamos embalados pelas camisas de flanela do Grunge e que tais. Como expliquei, só viria a prestar atenção ao Portishead através dos vídeos que pescava no Lado B MTV sob a batuta do Fábio Massari. É provável que tenha ouvido o disco pela primeira vez entre 1997 e 1998: mas, naquele ano, já tínhamos em rotação o Portishead, segundo disco da banda de Madame Gibbons e sua trupe.

Portishead, o disco, é tão brilhante quanto Dummy, mas a urgência do primeiro se sobressai. Era jazzy, moderno, um salto à frente de seu tempo: não tínhamos idéia do que diabos era trip hop ou o quão a música eletrônica evoluiria a partir dali, mas aquele disco soturno, com uma capa azulada e que trazia o frame de um curta – To Kill a Dead Man, para ser mais exato – que a banda produzira para lançar o álbum, era tudo o que mais queríamos ouvir…

Dummy completa 25 anos. Incrível como aquele primeiro disco do Portishead envelheceu bem, mantendo todo seu viço e frescor. Parabéns a Beth Gibbons, Geoff Barrow e Adrian Utley por brindar-nos com um trabalho tão belo e consistente: vocês não têm a menor idéia de quantas noites e tragos foram acompanhadas por esta obra-prima que vocês puseram no mundo…

Ainda espero poder ter a companhia desta maravilha por mais outros vinte e cinco anos…

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Regravando, refazendo…

Nunca escutei a Taylor Swift. Não por nada, mas ela não é o tipo de musa pop que me chama a atenção. Em algum momento a Madonna fez isso; nos anos 1990-2000, a Britney Spears também. Mas, mais que elas, a maneira como alguns grupos que admiro se apropriaram das canções destas musas me levaram a perceber algo além.

Versões como Like a Virgin ou Baby, One More Time, pelos escoceses do Teenage Fanclub e Travis, ou mesmo a desconstrução que os moços do Sonic Youth promoveram ao (sub)verter o clássico Into The Groove de Madonna ou Superstar dos Carpenters, me permitiram atentar para este flerte entre o pop e as diferentes variantes do rock’n’roll. Não tenho nada contra covers, mas, pela profusão de discos dedicados às releituras de outros artistas, vivemos um momento interessante…

Experiências como aquelas protagonizadas pelo Flaming Lips – com releituras de clássicos como The Dark Side of The Moon ou Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band – ou mesmo outras ainda mais inspiradas como o The Walkmen decidira regravar o álbum Pussy Cats de Harry Nilsson, para ficar em exemplos recentes, não são novidade, se considerarmos que já na década de 1970 Booker T. & The M.G.’s desmontaram um clássico como Abbey Road, dos Beatles, e nos entregaram com algo ainda mais brilhante: seu McLemore Avenue.

Voltando ao início, nunca me interessei pela sonoridade de Ms. Swift. Mas, confesso, a curiosidade me motivou a conferir o que canadense Ryan Adams fizera ao regravar 1989, álbum mais recente da moça, e imaginar o quão estranha esta combinação seria. Na verdade, fui surpreendido…

A surpresa foi por perceber que aquele disco que sequer escutara na voz de sua dona – exceção das onipresentes Shake It OffBad Blood – me parecera algo especial.

 

 

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A Fortaleza “réia” que, transformada e transtornada, confronta a memória…

Créditos: Divulgação/Haroldo Saboia

É possível perceber o  flerte sinfônico-progressivo que o Cidadão Instigado imprime nas faixas de Fortaleza, novo trabalho dos caras e, de longe, um dos melhores discos de rock’n’roll já gravados – e uma das obras mais pessoais que a música brasileira poderia produzir.

Talvez Fernando Catatau, Regis Damasceno, Dustan Gallas, Rian Batista e Clayton Martin não assumam isso, mas Fortaleza é pessoal pra caralho: parece a reflexão de alguém que, ao trilhar seu próprio caminho, apegado à memória e à aposta feita em um futuro incerto, conclui que tudo valera a pena.

Capa de Fortaleza, novo trabalho da banda Cidadão Instigado

Capa de Fortaleza, novo trabalho da banda Cidadão Instigado

De “Até Que Enfim” até “Lá Lá, Lá Lá, Lá Lá” o que temos é um desfile memorialista – pessoal e musicalmente falando. Não, não é por acaso que uma canção como “Perto de Mim” nos remeta a uma “Welcome To The Machine“: é parte da conversa, do diálogo, da memória que a banda constrói…

Também não é por acaso que a faixa-título beba em diferentes vertentes e passei do repente ao progressivo para contar como as memórias de uma cidade esvanecem, se transformam e, como consequência, nos levam a interrogar o que diabos acontecera com o lugar ao qual pertenciamos: como aquela “réia” cidade fora perdida e, ora transtornada/transformada, nos obriga a vê-la como uma estranha…

Fortaleza pode se encarado como um relato elaborado daqueles reunidos em torno não apenas de uma banda – neste caso, a Cidadão Instigado -, mas das diferentes experiências que se desenvolveram a partir dela. Os que, cansados de esquivar-se, decidem seguir; aqueles que, inquietos, vêem na imprevisibilidade da estrada uma alternativa; os que recordam seus dias no lugar onde viveram e, desiludidos, percebem que tal lugar não existe mais.

São diferentes às acepções para a palavra Fortaleza; também são as influências que alimentam o mosaico concebido por Catatau para iluminar sua Fortaleza: nos ecos de um Raul Seixas em “Quando a Máscara Cai“; no flerte com o progressivo que conecta “Perto de Mim” e “Besouros e Borboletas“; e no rock’n’roll em plena graça de “Dudu vivi dada” (mesmo remetendo à estética musical de comerciais de cigarros do final dos anos 1980), temos um álbum indispensável não apenas para compreendermos uma das mais incríveis bandas paridas por este país…

Um disco que é uma Fortaleza, mas, esta, escancarada para os que quiserem ver seus diferentes e promissores corredores, é uma reserva de surpresas.

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Uma obra-prima agora à distância…

Não sei, mas tenho uma queda por discos com o astral lá embaixo. Uma rápida olhadela nos meus, basta para se dar conta que muitos deles não são lá muito solares. Por isso não estranhe quando procuro falar das virtudes de No More Shall We Part, do Nick Cave & The Bad Seeds: namoro com este disco há alguns anos e, bem, já disponho de alguns outros discos do sujeito para dizer que este é especial…

No More Shall We Part é daqueles discos que você certamente não escutaria em um churrasco ou, quem sabe, não levaria para aquela festa com teus amigos. Não, nunca: este é um disco de fossa; de todas as fossas possíveis; de todos os nomes possíveis para definir o que diabos chega a ser uma fossa.

Da faixa-título até seu encerramento, o que temos em No More Shall We Part é tão somente um desfile sombrio de canções soturnas, inquietas e o desejo que estas parecem expressar por nos ver como coadjuvantes de algumas daquelas pequenas e desconfortáveis histórias concebidas por Cave e sua trupe.

Capa de “No More Shall We Part”, de Nick Cave And The Bad Seeds

Desconfortáveis como, por exemplo, As I Sat Sadly By Her Side onde aparentemente mãe e filho se reconectam e observam como a vida passeia diante de seus olhos; como todas as coisas se dobram frente ao tempo e a inevitabilidade deste. A mesma inevitabilidade que move um sujeito que decide deixar o leito que habita e experimentar o mundo mais uma vez, como narra uma canção igualmente poderosa como Hallelujah.

No More Shall We Part coleciona momentos que se equilibram entre o belo desesperador e o angustiante sublime. Com relação ao primeiro, fico com uma das minhas canções favoritas já compostas por Nick Cave: Fifteen Feet of Pure White Snow. A sensação que temos ao escutá-la é a de que estamos afundando e, ainda assim, mesmo percebendo o cadafalso, nos consideramos satisfeitos pela beleza envolvente de tal condição – mesmo quando temos a catarse metafórica da “pura e branca neve” que nos preenche na coda final da canção e nos abraça como que para um último e inevitável mergulho.

Porém, este último esforço parece reservado para God Is In The House. A ironia transborda por todos os lados através desta canção dona de uma acidez sublime: a vida moderna, seus temores, suas angustias, todas elas depositadas e repousando no colo de um Deus pronto para distribuir suas benesses para todos e todas as direções: “não há dúvidas: Deus está em casa” mesmo que não tenha deixado-a ainda, os seus habitantes estão abandonados à própria sorte e às agruras da existência.

E é assim, equilibrando-se em uma faixa em linha reta rumo ao cadafalso, rumo à queda inevitável que No More Shall We Part nos conduz. É estranho escrever sobre um disco de 2001 em pleno Ano da Graça de 2015, mas, bem, como disse, tenho uma queda por discos sombrios e, talvez, não queira deixá-los para trás – especialmente os clássicos.

No More Shall We Part é um clássico da desesperança, da tristeza e de como, ainda assim, há uma estranha beleza nos versos de Nick Cave e na música levada a cabo pelos Bad Seeds. Um clássico especialmente porque, mesmo em toda sua inevitável amargura, nos oferece uma certa iluminação. Talvez por isso tenha decidido não me afastar mais desta inevitável necessidade de escrever sobre esta bela obra-prima até agora distante…

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Um luto estranho e interessante…

MOURN_by_Albert Manau_ok

Mourn é o álbum homônimo de uma molecada da Catalunha que parece ter preenchido seus travesseiros com pregos, vidro e algumas discos de PJ Harvey, Belly e Pixies. O quarteto nascido em El Maresme, uma das várias províncias de Barcelona, parece ter saído de algum momento bem peculiar da década de 1990: fazem uma música densa, soturna e cativante que nos remete diretamente à cena londrina ou ao pós-Grunge circa 1996.

As influências assumidas por Jazz Rodríguez Bueno (Guitarra), Carla Pérez Vas (Guitarra, Vocais), Leia Rodríguez (Baixo) e Antonio Postius (Bateria) começam e terminam na década de nascimento da banda: PJ Harvey, Sebadoh, Sleater-Kinney são algumas das inspirações assumidas pela banda em seu disco de estréia.

Por sua vez, um aspecto chama também a atenção para a banda: a idade média de seus integrantes. Enquanto Jazz, Carla e Antonio beiram os vinte anos de idade, Leia Rodriguez mal tinha completado 15 anos de idade quando lançaram seu primeiro disco.

Com datas agendadas para diferentes cidades espanholas, Inglaterra e EUA, os moleques do Mourn já celebram uma conquista de gente grande: participarão como uma das atrações do festival Primavera Sound 2015. Não é para qualquer um, mas, pelo que demonstram em seu trabalho de estréia, a moçada do Mourn está no caminho certo…

Confere aí!

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O Fantasma do Sampaio pairando sobre a cabeça de Tatá

Há algum tempo percebo o fantasma de Sérgio Sampaio pairando sobre a cabeça de Tatá Aeroplano – seja em seu homônimo primeiro trabalho quanto nesta nova investida, o recente Na Loucura & Na Lucidez. Entendam-me, não que veja nisto um problema, mas justo o seu contrário: desde Pareço Moderno, do Cérebro Eletrônico – uma das diferentes casas de Tatá, juntamente com o Jumbo Elektro -, até este segundo álbum solo, o moço dá a impressão de ter derrubado em todas as garrafas possíveis e se abraçado aos livros para chegar a tal peculiar estado de graça musical.

Um estado, diga-se, no qual se digladiam as angústias individuais, os dissabores das coisas ao nosso redor e aquela urgência libertadora em jogar tudo pro alto. A combinação destes se transforma em lamentos únicos – algo da substância que envolve este Na Loucura & Na Lucidez.

Confesso ter chegado bem atrasado, é verdade, ao conferir a investida-solo do moço – o homônimo, Tatá Aeroplano, só conferi há alguns dias. Entretanto, mesmo sendo um dos últimos da fila, preciso dizer que Tatá já se notabiliza como dono de alguns dos trabalhos mais felizes da nova safra da música brasileira.

Isso porquê não contém o ranço insuportável que paira sobre alguns dos que articulam a tal MPB recente, mas propõe uma expansão, um “quê” que pretende lançar nossa música para frente – mesmo, como percebo, olhando no retrovisor aqueles que ofereceram o seu melhor e pagaram o preço por isso. Por isso, Sérgio Sampaio. Quando disse que o fantasma do sujeito paira sobre Tatá é por reconhecer que ele o atravessa por sua acidez, irreverência e urgência.

Este último adjetivo, me parece, dá o tom deste novo disco de Aeroplano: há uma urgência nas composições, no cantar, no sentido das músicas e como elas nos afetam – uma prova, Na Lucidez abrindo o disco. Este me parece o grande valor desta sua segunda investida-solo e é com ele que o sujeito afirma seu lugar como um dos grandes compositores de sua geração.

Penso, por exemplo, na irônica Amiga do Casal de Amigos que dialoga com a superficialidade, a solidão, a individualidade. Há uma estado de ironia que atravessa o disco e que se faz sintetizada na faixa – a do sujeito entregue à ironia da própria sorte em uma noite, mas percebe que esta noite foi igualmente irônica.

Onde Somos Um, nova parceria com a cantora Bárbara Eugênia – ela colaborara com Aeroplano no primeiro disco-solo -, também é uma das canções que saltam aos olhos neste disco. Estranho, mas este segundo salto-solo de Tatá possui uma sonoridade que continua a conversar com algo do álbum de estréia de Bárbara: muito disso, creio, se sintetiza na produção a cargo de Dustan Gallas e Júnior Boca (que também produziram o primeiro disco de Tatá).

Outra constatação que salta aos ouvidos neste novo disco é a continuidade do aparente diálogo com a noite – mas não qualquer uma, senão a boêmia paulista – como parece sugerir o próprio Tatá.

Este retrato ganha contornos nítidos no fecho deste novo trabalho: Na Lucidez. Na minha opinião, uma das melhores canções do disco e que, de longe, o fecha em um arremate impressionante este que é desde já um daqueles álbuns que devem figurar em qualquer lista de melhores do ano que se preze.

E, finalizando: lembram do fantasma de Sérgio Sampaio sugerido alguns parágrafos acima. Dizem que ele foi visto perambulando pela Augusta seguindo Tatá Aeroplano. Os mais atentos viram um sorriso no rosto da tal entidade, como se satisfeito estivesse com o rapaz e seu grande disco…

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